Os mitos pagãos representam uma ideiadistorcida sobre o que foi um fato.
A versão que segue é a da Leyenda, porém com outras palavras.
Diz, pois, que no começo dos tempos, havia um casal chamado Tata (o homem) e Nene (a mulher). O deus Tezcatlipoca, em sua versão de Titlacahuín, resolveu mandar um dilúvio sobre a Terra, mas antes ordenou ao casal que cortasse o tronco de um ahuehuetl e fizesse às pressas uma embarcação. (Ahuehuetl era uma árvore nativa do México. Estava associada à Ceiba, a árvore sagrada das mitologias mesoamericanas, e era utilizada na confecção do huehuetl, um enorme tambor ritual vertical.)
- Embarquem logo antes que o céu desabe! - disse o deus, sem meias palavras, tapando a embarcação sabe-se lá com o quê (a Leyenda não especifica). Depois, entregou uma espiga de milho para o homem e outra para a mulher, ordenando-lhes que se alimentassem delas durante o dilúvio.
Antes que o deus tapasse o ahuehuetl, Tata, ligeiramente aflito, perguntou:
- Vai demorar muito o dilúvio?
- Não interessa! - disse o deus, empurrando o homem para dentro.
- Mas eu temo, ó deus, que uma espiga apenas não baste...
- Silêncio! Nada deveis comer além dessas espigas, e mais não digo!
Encerrados no ahuehuetl, Tata e Nene vogaram então nas ondas durante um longo tempo, até que a fome se apresentou - pois não há lugar estreito e apertado no qual essa senhora magérrima não se introduza. Nene, a mais esfomeada, sacou logo a sua espiga e já se preparava para abocanhá-la quando a mão imperativa do esposo impediu-a, tirando-lhe o alimento.
- É cedo ainda! - disse ele. - Não sabemos quanto tempo vai durar o dilúvio!
- Para o Mictlín o dilúvio! - gritou a esposa, retomando a espiga (Mictlin, é o inframundo asteca.) - Você quer que eu seja encontrada morta com uma espiga cheia do lado?
Desvencilhando-se do braço de Tata, a mulher cravou os dentes na espiga, transferindo numa só bocada metade dos grãos para dentro do estômago.
- Bem, acho que você tem razão - disse o homem, dando também uma dentada na sua espiga. - Mas vamos dar só uma dentadinha e guardar o resto para depois, está bem?
- Não, não está bem - resmungou Nene, com a boca cheia de grãos. - Eu não vou passar fome enquanto tiver um grão nesta droga.
E assim, durante um brevíssimo período de tempo, Tata e Nene estiveram relativamente saciados, mas logo a fome voltou a cutucá-los bem na boca do estômago com o seu ferrão gelado.
- Ai, ai, ai! Que fome! - gemeu Nene ao esposo. - Pelo amor de Titlacahuán, faça alguma coisa!
Mas não havia nada a fazer. Eles já haviam comido não só os grãos, como as próprias espigas.
- Não há mais nada para comermos. É o fim - disse Tata, dando os primeiros passos para a rendição.
- Idiota! Abra essa droga! - gritou a mulher.
Mas o ahuehuetl estava muito bem fechado - fora um deus poderoso que o lacrara-e de nada adiantaram os protestos da pobre mulher desesperada.
- Miserável, abra essa merda...! Eu quero comer...!
- NENE...!!! - gritou Tata, escandalizado. - Quer ser fulminada por um raio?
- Que seja! Antes morta por um raio que de fome!
Mas a chuva continuava a cair, implacável, enquanto a embarcação jogava alucinadamente em todas as direções. Tata e Nene, com os estômagos vazios, experimentavam a quintessência da náusea.
Quando, finalmente, ambos estavam a um passo de entregar suas almas a Titlacahuán, ou a quem quer que as quisesse levar, a chuva parou e as águas começaram a baixar vertiginosamente. Como uma pedra atirada num precipício, o ahuehuetl mergulhou, fazendo com que os estômagos dos dois lhes subissem até a garganta.
- Deuses, ponham um fim nessa tortura! - gemeu Nene, revirando os olhos.
Tata, porém, percebendo que era o fim do dilúvio, sentiu renascer as esperanças. Após estender a mão para a cobertura da nave, viu-a abrir-se com maravilhosa facilidade.
- Viva, abriu...!
Um raio de sol ofuscante entrou no ahuehuetl, deixando-os cegos como gatinhos recém-paridos.
- Acabou, querida! - disse Tata, eufórico. - Nosso deus foi fiel!
- Cale a boca e arrume algo para comermos! - disse Nene, tateando na claridade.
Ambos desembarcaram em terra firme - ou quase, já que ela estava que era pura lama - e puseram-se a procurar, feito doidos, algo para comer.
- Será que já podemos...? - disse Tata.
- Acabou o dilúvio, não é? - esbravejou a mulher.
Apesar de as águas terem baixado consideravelmente, ainda havia mares, rios e lagos, e foi num desses mananciais naturais de água que eles pescaram um peixe enorme e gordo. Nene quase desmaiou ao vê-lo surgir das águas do rio, do lago ou do mar, todo lustroso e prateado, a se retorcer.
- Meta fogo nele! - disse a mulher, lutando para não cravar os dentes no bicho ainda vivo.
Tata foi correndo juntar alguns gravetos e tratou de fazer uma enorme fogueira - os gravetos estavam molhados, mas, como o Sol ardera com força, não tardaram a secar e logo o peixe enorme, de prateado que era, tornou-se gloriosamente dourado, lançando para o céu um perfume incomparável.
E essa foi a ruína de Tata e Nene. Ao chegar às narinas de Titlacahuán, a fumaça encheu-o de ódio contra o casal de náufragos. Num pulo, ele desceu à Terra e foi xingar os dois esfomeados.
- Malditos! O que estão fazendo?
- Comendo, ora! - disse a mulher, lambuzada com a graxa do peixe.-Haveríamos de ficar sem comer para sempre?
O deus, então, num acesso de ira, cortou as cabeças dos dois e depois as costurou nos seus traseiros, transformando-os em cães (pelo menos é o que está dito lá na Leyenda de los Soles: “Les cortó los pescuezos y les remendo su cabeza en su miga [nádega], con que se volvieron perros”).
E foi assim que terminou este malfadado dilúvio.